Respeitável público
Elisa Lucinda
Meus amores, quem me conhece e acompanha minha carreira, alunos, amigos e
fãs sabem que sou workaholic e que não suporto faltar ao trabalho,
mesmo sendo alguém que curte passear, andar de bicicleta, se divertir,
cantar, fazer saraus, namorar, dançar forró, sou uma pessoa que trabalha
todos os dias e me faz muito mal faltar ao meu ofício. Metade disso é
saudável, representa responsabilidade, compromisso, amor pelo labor
realizado com afeto, como é o meu caso.
A outra metade pode ter origem
naqueles tristes quatro séculos de escravidão que, até hoje, como uma
ponta de ancestralidade, não permitem que nosso inconsciente nos
autorize a descansar. Tenho pensado muito sobre isso e também conversado
com amigos. É como se no fundo de minha alma ou de minha cabeça
houvesse uma voz a dizer: “Você aguenta. Quem não aguenta é malandro ou
fraco”. Junta-se a tal aforismo a milenar opressão que levou a mulher a
uma extensa vida de tripla jornada de trabalho visto com naturalidade
por opressores e pela sociedade. Pense numa pessoa menstruada, com
cólicas, cozinhando com o filho pequeno no colo, já tendo deixado a
roupa de molho, arrumado a casa e tendo trabalhado fora durante o dia.
Muitas vezes abandonada pelo marido e cheia de filhos teve que resolver a
parada sem que o mundo perguntasse a que horas ela dorme. Desse
caldeirão que naturaliza escrotidões e abusos também somos feitos. Minha
terapeuta disse: “você parece servir à uma empresa muito rigorosa que,
apesar de tantos anos de trabalho, não te permite férias remuneradas”.
Fiquei bege com a revelação.
Depois de ficar no começo do mês, internada por conta de uma
diverticulite e de ter por isso transferido a temporada de “Parem de
Falar Mal da Rotina”, em Salvador, na Caixa Cultural para este fim de
semana, fui surpreendida por um acidente doméstico onde fraturei o
pulso. Apesar de estar tocando uma música boa, quebrei o rádio. É uma
brincadeirinha boba numa hora dessas, mas a pura verdade. Com o pulso
fraturado em vários pontos estou afastada das minhas “atividades
laborais” durante o verão. Chorei muito. A notícia me arrasou. Na ilusão
e na minha pulsão de trabalhar e trabalhar, nem pensei quando entrei no
hospital domingo para a cirurgia que, na quinta, eu não pudesse atuar.
Afinal estava preparada, bronzeada, afiada, bonita e magra para me
apresentar ao público baiano na 16ª temporada do “Parem de Falar Mal da
Rotina”, na cidade que me acolhe e cujo público jamais me faltou.
Explico: a primeira vez que me apresentei na Bahia da magia
profissionalmente foi num projeto chamado Inverno em Salvador, isso era
1996 e não posso esquecer do lugar lotado me recebendo de braços
abertos, como se já fosse uma artista consolidada e famosa. Um caso de
amor. Depois disso, desculpe falar, eu e minha trupe só lotamos na
Bahia. Não há outro lugar fora do Rio de Janeiro que tenhamos nos
apresentado mais com essa peça do que em Salvador. A notícia de que não
poderia estar neste finde avassalou meu coração, me tirou de órbita, me
deixou sem chão. Escrevo essas palavras agora mais consciente de que
preciso descansar, ficar com o braço imobilizado, exercícios
terapêuticos para me recuperar de uma cirurgia de onde saí com uma placa
de titânio, mais um ganchinho estabilizador e sete pinos no pulso.
Meu amado público, sabe-se muito pouco do ofício artístico. Em nosso
nome digo, sem medo de errar: trabalhamos com dor de barriga, gripe,
febre, enxaqueca, contusões. Ninguém vê. Nos sacrificamos porque se a
gente faltar não vão gravar o capítulo ou a cena do filme, ou vão ter
que devolver os ingressos de um público inconformado que se organiza
para nos ver e paga para garantirmos sua diversão. Como amamos fazer
esse tão incensado serviço, seu sacrifício raramente é visto ou
considerado por quem não está dentro da “dança”. No entanto, entra
governo, sai governo e os artistas lutam incansavelmente e, inúmeras
vezes sem remuneração para não deixar o samba morrer. Em compensação, é
sustentado pelo amor de seu público, geralmente proporcional à sua
dedicação. Agradeço aos parceiros, patrocinadores, à Tom Tom Produções e
à tanta gente que a economia criativa emprega no afã de traduzir em
arte o Brasil para o Brasil.
Meu amado público, não deixe que nenhum governo nos despreze. É o
artista que representa o povo. É ele o palhaço, a mocinha e o bandido da
história. Não sei porque escrevendo essas linhas comecei a chorar. Acho
que vou usar o som dos aplausos que guardo em meu peito, os calorosos
aplausos que vieram de suas mãos para o meu coração, respeitável
público, e que são remédio invisível que me ajudam nessa hora da cura.
Até breve, minha quimera. Sei que a Bahia me espera.
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