O trabalho escravo no Brasil de hoje é o mote do novo solo do baiano Alan Pellegrino. O ator dá voz a personagens como Guará, um típico brasileiro invisível cuja história é contada através de múltiplas narrativas num híbrido de teatro e audiovisual
“Quando uma mulher indígena é assassinada, eu sempre penso: poderia ser minha mãe.
Quando um homem indígena é assassinado, eu sempre penso: poderia ser eu” (fala da peça)
O Brasil fez uso da mão de obra escrava ao longo de três séculos. Foram, portanto, 30 décadas ou 300 anos de escravidão. A escravidão foi oficialmente abolida no país em 1888, mas algumas células desse sistema ainda eram vistas nos anos seguintes. Um século após esse fim, entre os anos 1980 e 2000, na cidade de São Paulo, a mais rica do país, o trabalho análogo à escravidão perpetuava-se nos fundos de quintais, em empresas clandestinas. Essas empresas ganharam os nomes de facções – o mesmo dado a grupos criminosos. É numa dessas facções que vamos encontrar Guará, jovem que troca sua cidade natal pela ilusão de um trabalho bem remunerado e de uma vida mais digna. Guará trabalha numa confecção de calças jeans na Cidade das Formigas, onde é ambientada boa parte da trama de “Nave mãe”, segundo solo do ator baiano Alan Pellegrino, também autor do texto, fruto de sua segunda incursão pela dramaturgia. Depois de dar vida no teatro ao lendário Volta Seca, remanescente do bando de Lampião, ele mira agora em temas sociais como o do trabalho escravo. O ator e dramaturgo é novamente dirigido por Joelson Gusson, com quem criou a companhia Dragão Voador, repetindo, assim, a parceria de espetáculos como “Hotel Brasil” (2017) e o supracitado “Volta Seca” (2018). A encenação de “Nave mãe” foi contemplada com o edital “Retomada Cultural, promovido pela Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro, através da Lei Aldir Blanc, e poderá ser assistida de forma remota, de 17 a 29 de abril, através das transmissões gratuitas pelo canal da Dragão Voador no YouTube.
A trama é ambientada nos dias de hoje, com referências ao novo coronavírus e à pandemia, o que não impede a narrativa de ir e voltar no tempo. Em uma dessas voltas, somos levados ao ano de 1996, quando um grupo de mães passa a marcar presença na Praça da Sé, Centro de São Paulo. Em comum, a busca pelos filhos desaparecidos. Esse grupo ficou conhecido como Mães da Sé numa referência às Mães de Maio (Madres de la Plaza de Mayo), unidas por encontrar os corpos dos filhos, vítimas do regime militar na Argentina. Em paralelo à trajetória de Guará, acompanhamos a busca de sua mãe por seu paradeiro.
E Alan personifica todos esses personagens, sendo ele próprio um deles. Ele usa de seu corpo e sua voz para colorir cada um com tinta própria. E o Guará se difere do truculento Gato, que, por sua vez, difere do Tamanduá, que, por fim, difere do sobrevivente ao levante (olha o spoiler!). Da mesma forma que o narrador se desdobra em outros, o mesmo pode ser dito sobre a narrativa, que abre-se dando lugar a outros lugares de fala. À linha do tempo de Guará são costuradas falas como a do rapper Criolo ou a de um pequeno trabalhador rural, assombrado por um sonho recorrente. Tais recursos narrativos juntam-se num caleidoscópio em nada colorido. As tintas são, no caso, ocres em razão dos temas levantados pelo enredo.
“Nave mãe” é também uma canção de Vital Farias, lançada no LP “Taperoá”, de 1980. A canção também mistura-se à narrativa do espetáculo. E traduz o vínculo do ator com sua mãe, de quem foi afastado na mesma década em razão de ela ir trabalhar no exterior. “Essa origem da qual faço parte e da qual fui em busca me revelou um passado não tão distante, que me fez refletir sobre quem sou”, reflete o ator fazendo em seguida um alerta: “Eu não me deixei ser escravizado no passado e, se hoje escrevo sobre isso, é para fazer com que essa mensagem ganhe um novo significado para o futuro”.
Nesses tempos em que a vida virou moeda num jogo macabro onde o negacionismo dá as cartas, com indivíduos reduzidos a meras estatísticas, o futuro é agora.
Sinopse:
Guará deixa sua cidade natal atraído pela oferta de trabalho na fictícia Cidade das Formigas. Na nova cidade, ele ingressa numa facção – como são chamadas certas empresas clandestinas – voltada à confecção de roupas. O ambiente mostra-se hostil, num trabalho análogo à escravidão, pautado pela exploração e pela opressão da classe trabalhadora.
Ficha técnica:
Idealização, dramaturgia e performance: Alan Pellegrino
Direção: Joelson Gusson e Alan Pellegrino
Diálogo Artístico: Maria Luisa Friese
Coordenação de Projeto: Sarah Alonso
Cenário e figurino: Joelson Gusson
Iluminação: Guiga Ensá
Preparação vocal: Jorge Maia
Produtor associado: Osvan Costa
Produção executiva: Máximo Cutrim
Assessoria de imprensa: Christovam Chevalier
Mídias sociais: Marianne Lorole
Programação Visual: Joelson Gusson
Fotos: Carol Nunes
Filmagem: Ubuntú Produtora
Produção: Riquixá Invenções Artísticas
Realização: Dragão Voador
Serviço:
Nave Mãe
Estreia: dia 17 de abril (sábado)
Após a apresentação, haverá debate com a participação do padre Ricardo Rezende, defensor dos Direitos Humanos, em especial das vítimas de conflitos fundiários no Pará
Temporada: 17 a 29 de abril
Dias e horários:
Transmissões: Sessões pelo canal da Dragão Voador no YouTube
Duração: 35 minutos
Classificação: 12 anos
Link: https://www.youtube.com/channel/UCu1XsaR5z_4WBNePDcn2fjw
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