Dia Nacional do Livro: 29 de outubro | Como ser escrivão de polícia me ensinou a escrever literatura*
Após ouvir mais de 30 mil pessoas como escrivão, percebe-se que há uma repetição de "nadas". Acontece que todo dia acontecem coisas ruins, ou então incômodas, e essas coisas não desaparecem. As agressões e discussões muitas vezes têm sua raiz nisso. A ganância humana é outro fator importante, pois os golpes estão intrinsecamente relacionados a ela. A falta de atenção em lugares conhecidos como perigosos é outro fator que leva aos roubos e furtos.
O trabalho expandiu minha perspectiva. Sempre acreditei que "não existem milagres", e que o único caminho é o trabalho e o estudo. Sou, por natureza, uma pessoa pacífica e moderada, e isso contribuiu para meu desempenho no trabalho e aprimorou o que já estava presente em mim. Nasci em um mundo marcado pelo preconceito, homofobia e misoginia, mas isso não afetou meu comportamento. Afinal, nasci em uma situação de pobreza, e meus amigos eram de origens diversas, negros, pobres, homossexuais, mulheres, e, quando você está na base, não há muito o que fazer além de se divertir com todos.
Comecei a escrever histórias porque sempre tive o hábito de expressar minha opinião. No entanto, na comunicação oral, enfrentava muita resistência, com poucas pessoas dispostas ao diálogo, e a maioria tendia a contradizer, mesmo quando estavam claramente erradas. Assim, ouvindo as pessoas e acreditando que todos têm parte no conflito, decidi escrever sobre isso. Gosto de destacar que pequenos problemas cotidianos podem se transformar em problemas maiores no futuro, e, por isso, escrevo essas crônicas diárias que refletem o comportamento das pessoas.
A linguagem oral foi a única forma de comunicação por milhares de anos. A escrita pode ser ambígua, pois depende da habilidade do escritor e da interpretação individual. Leonardo Boff afirma que, quando lemos algo, na verdade estamos relendo, pois nossas leituras anteriores moldam nossa compreensão. O que ouço nos depoimentos que registro diariamente não me influencia muito, pois é frequentemente uma repetição. No entanto, colho mais informações do que consigo absorver de outras fontes, como livros, inquéritos e processos que leio diariamente.
Meus textos não são ficcionais; são baseados em eventos reais, mas são tratados de forma literária. A ideia é proporcionar ao leitor uma experiência de leitura agradável, repleta de figuras de linguagem, mitos antigos, histórias antigas, filosofia e religião, apresentados de maneira acessível e leve. Afinal, minha profissão exige que eu escreva de forma técnica, mas também inteligível.
Para quem deseja iniciar na escrita, a chave está em plasmar os pensamentos no papel. Todos têm potencial, basta praticar. Escreva sobre o que aconteceu no dia, em algum evento, ou em uma memória qualquer. Escreva como costuma falar. A realidade é que as pessoas não praticam o suficiente, não leem o bastante e preferem ouvir. Aqueles que ouvem muito também têm suas opiniões e deveriam, independentemente da natureza de suas ideias, colocá-las no papel.
*André Luiz Leite da Silva (@cronicasmaviosas) é escritor e filósofo paulista, nascido em Itararé, no interior de São Paulo. Escrivão de Polícia Civil há mais de 20 anos, trabalhou em importantes delegacias da capital paulista. Sua obra mais recente é o “Manual do Cretino” (Editora Grupo Atlântico, 228 pág.) — sua 24ª publicação entre 43 livros escritos. A partir de sua experiência profissional, o autor deságua numa investigação acerca das “idiotices” que foram naturalizadas pelas pessoas, o que resultou no primeiro volume.
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