Caruru de fé e partilha: tradição familiar mantém vivo o legado de Cosme e Damião
Em um país onde tradições afro-brasileiras resistem frente à intolerância religiosa, o caruru de Cosme e Damião se mantém como um ato de fé, cultura e solidariedade. A história da família Santos e Santos é um exemplo vivo dessa força ancestral.
A professora Drª Elisabete Aparecida Pinto, do Instituto de Psicologia e Serviço Social da UFBA, que já havia sido convidada em outros anos e agora participa pela primeira vez da celebração, afirma que a religiosidade é um espaço de resistência e afirmação da identidade negra, onde o respeito à ancestralidade não é apenas memória, mas continuidade de vida e de luta. Para ela, cultivar tradições como o caruru de Cosme e Damião significa manter viva uma herança que atravessou gerações, carregando valores de solidariedade, partilha e espiritualidade. “É um gesto de reconhecimento da força dos ancestrais e de afirmação cultural diante de um mundo que muitas vezes tenta silenciar essas práticas”, ressalta.
Tudo começou há 46 anos, quando nasceram os caçulas da família — um casal de gêmeos. Em homenagem a Cosme e Damião, santos gêmeos cultuados no catolicismo popular e também nos terreiros de matriz africana, os pais Luiza Maria Santos e Santos e Carlos Ribeiro dos Santos decidiram realizar, desde então, o caruru todos os anos, no dia 27 de setembro.
“Temos uma fé inabalável nos santos gêmeos, com pedido de que aos filhos, netos, genros, noras, familiares e amigos nunca falte alimento. Por isso fazemos um caruru com fartura, pedindo muita paz e saúde e temos a felicidade de termos nossos pedidos atendidos”, afirmam os pais.
O que começou como um gesto íntimo de devoção cresceu e se consolidou como tradição. Hoje, a celebração reúne familiares, amigos, vizinhos e convidados, transformando-se em um marco comunitário de fé e partilha.
Entre os filhos, a gêmea Carla Luiza Santos e Santos, professora e pós-graduada em História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, destaca que dar continuidade ao ritual significa também enfrentar o racismo e a intolerância religiosa. Vencedora do Selo Professora Antirracista em Camaçari, ela ressalta: “Manter essa tradição é afirmar a identidade afro-brasileira e o respeito à diversidade, em um tempo em que manifestações como o caruru e a distribuição dos doces dos Ibejis estão cada vez mais ameaçadas.”
Ao lado do irmão gêmeo, Carlos Ribeiro dos Santos Filho, ela representa o elo mais profundo com os santos que inspiram a devoção da família.
A tradição também conta com o cuidado e o sabor de tia Maria Etelvina, carinhosamente chamada de Vina, que participa da preparação do caruru com seu tradicional vatapá, farofa e banana da terra. Para ela, a festa é movida pela fé e pela partilha.
“Sou católica e mulher de muita fé. Acho importante manter viva a tradição que a família tão lindamente reforça a cada ano, e também esse olhar aos necessitados, porque arrecadam-se alimentos para quem tanto precisa. O caruru há anos atrai pessoas pela fé, pelo sabor e pelo sentido da solidariedade”, conta.
A cada ano, o evento ganha ainda mais força. Além da mesa farta e simbólica do caruru, servido em estilo self-service, do bolo, dos doces e lembrancinhas, a família também transforma a celebração em gesto de solidariedade. Os convidados são incentivados a levar alimentos não perecíveis, destinados a instituições sociais. Ao final, quentinhas são preparadas e distribuídas para pessoas em situação de rua, ampliando o sentido comunitário do evento.
Este ano, a instituição beneficiada será o Instituto Semeadores da Paz, localizado na Vasco da Gama, que atua em prol da dignidade e inclusão de crianças e famílias vulneráveis. Em 2024, os alimentos foram destinados ao Lar Vida, no Marotinho, e em 2023 ao GAAC – Grupo de Apoio à Criança com Câ…

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